Quase todos nós somos gratos a presentes ou às dádivas de amor, ajuda e hospitalidade. Sabemos o que é a gratidão. Todos são favoráveis a ela, ou, pelo menos, favoráveis a recebê-la. Muitas crianças aprendem, desde muito cedo, que é uma demonstração de boas maneiras dizer “obrigado”. Mesmo nas culturas em que as expressões verbais de gratidão não são esperadas, os hábitos de reciprocidade se fazem presentes.
Praticamente toda língua tem uma palavra para “gratidão”, e todas as principais religiões estimulam as expressões de gratidão.
O oposto de gratidão é um sentimento de direito adquirido. Nossa vida cotidiana em uma economia baseada no dinheiro reforça a ingratidão, pois não há necessidade de sentir gratidão por um serviço pelo qual pagamos. Se estamos hospedados em um hotel caro, julgamos ter o direito a um sistema de instalações hidráulicas funcionais, além de lençóis e toalhas limpos. Não sentimos nenhuma necessidade de ser gratos por essas coisas. Se pagamos por um produto ou serviço, isso faz parte de uma troca recíproca.
Quando compro maçãs na banca da esquina, perto de casa, pago o preço pedido em dinheiro. O dono da banca e eu dizemos “obrigado” um ao outro, e às vezes batemos um papo amigável. Mas nós dois sabemos que se trata de um intercâmbio comercial, e não de um presente. No sistema de caixa de auto atendimento no supermercado perto de casa, quando vou fazer compras, não há nenhuma necessidade de dizer “obrigado”. A interface que faz a transação financeira é uma máquina e o mercado pertence a uma corporação cujo dever principal é obter lucros para os acionistas, cuja expectativa é a obtenção de dividendos regulares.
A despersonalização asfixia a gratidão, e os consumidores logo desenvolvem uma consciência dos seus direitos; eles têm um direito legalmente adquirido de esperar pelos produtos ou serviços pelos quais pagaram, e de reclamar quando não recebem o que esperam. E, em geral, não sentem nenhuma gratidão pela terra que produz o alimento que consomem, ou pelos agricultores que o cultivam, ou pelas pessoas que o transportam e preparam, uma vez que tudo isso é extremamente despersonalizado e remoto.
Os desastres mudam nossa perspectiva. É comum que pais, maridos, esposas, filhos ou amigos sejam vistos por nós como seres óbvios, naturais. Contudo, se eles morrerem, sobretudo se sua morte for inesperada, seus amigos e familiares tomarão consciência do quanto eles dependiam deles, e de quanto recebiam deles. Se alguém quase perder um olho em um acidente, tal pessoa irá se sentir muito grata por ter olhos, quando anteriormente os olhos eram a coisa mais normal e natural do mundo. Se uma pessoa perder um computador ou smartphone cheio de informações pessoais, irá se sentir grata se alguém achar o aparelho perdido e devolvê-lo, ainda que antes esse já fosse lugar-comum e fizesse parte de seu cotidiano. Se houver um longo corte de energia, ou uma greve que impeça o transporte de alimentos a nossos mercados e centros de distribuição, a ponto de não conseguirmos obtê-los, muitos de nós ficarão profundamente gratos quando os bens e produtos voltarem a ser distribuídos.
Assim que pararmos de não dar o devido valor às coisas, começaremos a perceber que podemos ser gratos a quase tudo. Só existimos porque nossos ancestrais sobreviveram e foram bem-sucedidos em reproduzir-se a parir da origem da vida. Como bebês, éramos totalmente dependentes das outras pessoas para nossa sobrevivência. E, apenas por termos sobrevivido até a época em que hoje nos encontramos, fomos mantidos por centenas, milhares, até mesmo por milhões de outras pessoas: agricultores, professores, construtores, eletricistas, encanadores, médicos, dentistas, marceneiros, as pessoas que projetam e constroem computadores e nossos smartphones, os pilotos e a tripulação que nos levam pelos ares de uma parte do mundo a outra, e assim por diante.
Portanto, estamos todos aqui somente porque nosso planeta existe e a vida na Terra evoluiu ao longo de bilhões de anos para nos dar este planeta vivo do qual dependemos.
Por sua vez, nosso planeta faz parte do Sistema Solar, e toda vida na Terra depende da luz mantenedora do Sol e de sua atração gravitacional que nos mantém em uma órbita estável e ecologicamente cordial.
Além disso, o Sol depende de nossa Galáxia, a Via Láctea. É uma pequena parte em sua vastidão, junto com várias centenas de bilhões de outras estrelas. No centro da Via Láctea há um centro galáctico supermassivo, altamente energético, lançando matéria ionizada e vastos campos elétricos e magnéticos, com linhas de força magnéticas e correntes elétricas no plasma dos braços galácticos de milhões de anos-luz, mantendo o meio ambiente do nosso Sol.
Nossa Galáxia faz parte de um aglomerado galáctico que os astrônomos chamam de “Grupo Local”, formado por mais de cinquenta galáxias; esse, por sua vez, faz parte do “Superaglomerado de Virgem”. A radiação eletromagnética que permeia o Universo inclui a luz de todas as estrelas e galáxias, algumas das quais podemos ver a olho nu: e, vindo invisivelmente de todas as direções encontra-se a luz fóssil surgida pouco depois do Big Bang, conhecida como Radiação Cósmica de Fundo em micro-ondas.
A história científica de nossa criação nos diz que todo o Universo se originou há 13,8 bilhões de anos no Big Bang, muito minúsculo de início, menor que a ponta de um alfinete, e que desde então não parou de crescer e se expandir. Alguns antigos mitos da criação falam sobre a origem de todas as coisas como a incubação do ovo cósmico, no que se assemelha à narrativa científica contemporânea. Tudo provém de uma origem comum, e tudo está relacionado. Sem esse evento criativo primordial, não haveria nenhum Universo e nós não existiríamos. E, se as propriedades das partículas subatômicas, dos átomos e das forças da natureza tivessem sido ligeiramente diferentes do que são, a vida como a conhecemos não existiria, e não estaríamos aqui para refletir sobre ela.
fonte do texto:
SHELDRAKE, Rupert. A ciência da prática espiritual: experiências transformadoras, seus efeitos e sua eficácia em nosso corpo, no cérebro e na saúde. São Paulo: Ed Pensamento Cultrix, 2021. p.79-82.
Disponível em: <https://www.grupopensamento.com.br/produto/a-ciencia-da-pratica-espiritual-8632>fonte da imagem:
BINGEN, Hildegarda_de. Reprodução de Iluminura do Liber scivias Domini mostrando a estrutura do cosmos. Cerca de 1.165.
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Hildegarda_de_Bingen>