A mensagem, o ensinamento, a boa-nova dos grandes sábios e despertos de todos os tempos são sempre as mesmas e são de uma simplicidade fulminante: “Vocês não são o que não são, vocês são o que são”. As diferentes vias, terapias ou religiões vão se organizar insistindo sobre este aspecto ao invés de insistir sobre outro: sobre o que não somos ou sobre o que somos.
“Non est” – eu não sou: nós não somos o ego, o mundo, a matéria, o mal, o sofrimento, a ilusão, o mental, as memórias, os pensamentos, os agregados, etc. Libertar-se daquilo que não somos é a condição para descobrir aquilo que somos. Essas vias serão as “vias purgativas”, a purificação de tudo aquilo que não é, é a condição para acesso à infinita pureza daquilo que é; outras vias darão maior ênfase ao conhecimento e à contemplação daquilo que realmente somos: a luz, a paz, a vida, a vacuidade (o espaço esvaziado daquilo que não somos). O Ser, Deus, o santo, o sagrado, o divino, o Real soberano que tem todos os nomes e que nenhum nome pode nomear, a afirmação desta Presença: “Eu Sou o que Eu Sou“, podem me libertar de tudo aquilo que eu não sou e me dar acesso à Trindade íntima no coração do Real, o Ser (Pai), a Consciência (Filho, Logos), a Beatitude (Santo Espírito, Pneuma), sat – cit – ananda, dizem os textos sagrados da Índia.
As terapias ou métodos de cuidado, de salvação ou de libertação destas diferentes “vias”, resumem-se a três denominações: primeiro as terapias purgativas (ativas e cognitivas). Em um primeiro momento, trata-se de evacuarmos (exorcizarmos) o mal, a doença, o sofrimento, o medo, a falta (desejo), o tormento, a dúvida, a questão, para chegarmos a uma vida sem sofrimento, sem dor, sem dúvida, sem mentira, sem desejo, sem medo – nem atração nem repulsão – considerada como a vida bem-aventurada, nossa verdadeira natureza, aquilo que realmente somos. Em seguida, trata-se de através da observação, integrar mais do que exorcizar o mal e o sofrimento, superá-los, conhecer sua causa (o mental, o ego), observar as memórias que nos constituem, o encadeamento das causas e dos efeitos, nos desembaraçar disso para nos tornarmos livres, o “liberto-vivo” (jiva mukta = sânscrito: “aquele que alcançou a libertação enquanto vivo) que é a nossa verdadeira natureza livre e luminosa.
Em seguida vêm as terapias iluminativas (contemplativas). Aqui trata-se menos de lutar contra o mal do que de afirmar o bem, de lutar contra as trevas do que de afirmar a luz, de lutar contra o ego do que de afirmar o Self. Não lutar contra aquilo que eu não sou (minha sombra, meu duplo, meu ego), tomar consciência do Eu Sou o que Eu Sou (a própria presença do Ser em mim, em tudo e em todos). Afirmar, contemplar, viver nesta Presença do “Eu Sou”, pode me libertar daquilo que eu não sou e daquilo que não é. Isso é viver desperto, ter saído do sono e da ilusão, é viver salvo, “salvo do inferno”, da clausura no “ego” (pecado, ilusão) e dos seus “mundos” (sofrimento, impermanência) tomados como sendo a realidade.
Enfim, as terapias unitivas (contemplativas, ativas). Após termos nos purificado daquilo que não somos e termos tomado consciência daquilo que somos, é hora (kairos) de celebrar e colocar em “ação” aquilo que “eu sou” através do louvor e da compaixão. Podemos falar, então, de terapias “eucarísticas” (eucaristia, ou seja, “agradecer, dar graças”). O processo de cura pode igualmente começar por este tipo de terapia. Agradecer, dar graças, pela Presença do Ser que reconhecemos estar por todo lado e sempre presente. A gratidão dilata o coração e o corpo e pode nos libertar de suas diversas e pesadas couraças. Através do dom e da compaixão, é o próprio movimento da Vida que está em marcha, que circula e nos coloca em relação “unitiva” com tudo aquilo que existe.
O “Eu Sou o que Eu sou” revela-se como “Eu Sou que ama”; neste amor, tudo é respeitado em sua alteridade (sua forma) e tudo é Um. Quando “Eu Sou” ama, ele faz o que ele quer (ame e faça o que você quiser); como um sol, ele brilha “sobre o justo e o injusto”. “Aquele que não ama permanece na morte”. O objetivo de todas essas “vias” e terapias, não é o de “passar” daquilo que é mortal àquilo que está sempre vivo? Reencontrar em nós a capacidade de amar, de amar tudo aquilo que é, tal qual aquilo é (sem complacência, sem fatalismo), é reencontrar nossa “capacidade de Deus” (capax dei). “Deus, ninguém jamais o viu”, “Aquele que ama, habita em Deus e Deus habita nele”. Mais profundo do que aquele que não ama em nós (o sofredor, o doente, o pecador, o ego, o mental, etc.), é Aquele que ama em nós (o Self, o Ser, Aquele que tem todos os Nomes e que nenhum nome pode nominar) cuja Presença devemos descobrir. Caminhar, viver, até mesmo sofrer, morrer em Sua Presença (que não nasce nem morre) para o bem-estar de tudo e de todos.
Terapias purgativas, iluminativas e unitivas são inseparáveis e podem ser praticadas conjuntamente (mais do que progressiva ou separadamente), pois do que serve falar de contemplação do Ser e de celebração do amor, se nossas memórias, nossas atrações, nossas repulsas, nosso sofrimento nos impedem de experimentá-las?
fonte do texto:
LELOUP, Jean-Yves. A sabedoria que cura. Petrópolis: Vozes, 2018. p.99-101