VIVER EM CONTEMPLAÇÃO

A capacidade de contemplar molda e cria a nossa vida, porque o que somos neste momento, no manifestado, ou o que parecemos ser, depende do grau de contemplação da nossa mente. A contemplação é o ponto de reconhecimento do real em cada pessoa. Não é um método, não é um caminho especial para alguns, os místicos. Não é estranho a ninguém. É a Consciência reconhecendo-se a si mesma. A palavra “contemplar”, mais do que a palavra “meditar” usada nas tradições orientais, evoca em nós um olhar sereno e silencioso, um olhar que não tenta captar nada, apenas “estar aí”. E nesse “estar aí” ficamos a sós conosco mesmo e a sós com a realidade.

Podemos pensar que estamos a contemplar o que somos somente após aprendemos a contemplar? Só se pode ver o Ser, sendo-o. O verdadeiro olhar é o olhar do Ser. Os métodos são supérfluos quando nos dispomos a permanecer em silêncio a contemplar. É inútil um sistema que suponha uma pessoa isolada, com um caminho a percorrer e uma meta a atingir. Nos enganamos ao querer contemplar com um objetivo. A raiz do erro está na natureza da mente, que deixamos escapar, preocupados em ser eficazes e em chegar a algum lugar. Um equívoco que cria uma realidade de imaginação, na qual a contemplação não tem lugar, apenas simples pensamentos.

Estas são possíveis questões para uma sincera investigação: de que forma estou a viver? O que contemplo no viver? O que estou concebendo realidade? Se não vejo como a minha mente funciona e como estou criando a realidade, não vi nada de verdadeiro, ainda que veja muitas aparências.

Toda busca da verdade, seja ela filosófica, espiritual, científica ou social, será sempre marcada e distorcida pela minha concepção da realidade. Ou, dito de outra forma, quando não sei como minha mente funciona fabricando coisas, estou inadvertidamente inventando a realidade e, a partir daí, vivendo as imaginações. Parece que não é nada, pois só necessitamos a verdadeira vida quando já a conhecemos. Posso viver sonhando ou posso viver desperto. Mas se o profundo da minha consciência me chama, se noto intensamente que não estou vivendo o que intuo o que a vida é, busco então investigar, e investigando aprenderei a contemplar. Se entendo que a mudança constante não é real, e ainda assim, vejo que tudo muda; se me apercebo de que as coisas não são o que parecem em qualquer nível conhecido, ponho-me então a investigar uma e outra e muitas vezes.

Ao sentir a necessidade do eterno, caminho para adentrar a consciência e assim descubro a contemplação. A indagação da contemplação é a indagação da vida. Tudo depende disso. É a nossa “vida” que importa, não a vida conhecida, a vida desconhecida que nos espera.

Quando descobrimos a natureza do Real, do Ser, a descoberta é tão inesperada, tão nova, tão atemporal, que ou se vive na instantânea totalidade ou não se vive. Ou se É todo ou se é um sonho. Só a totalidade instantânea me liberta da ilusão, não algo que desenvolvo progredindo no tempo. Os físicos também investigaram a consciência; embora tenham começado por acreditar que estavam à procura de outra coisa – a matéria – encontraram a única coisa que havia: a consciência. E, através da sua pesquisa e observação, chegaram à conclusão – teórica, claro – de que a realidade é holística, é um todo, e que esse todo está em cada uma das suas partes. Isto desfaz todas as vias lógicas de alcançar a realidade a que estamos acostumados. A lógica é um jogo da razão que leva a resultados limitados. Mas se nos questionarmos sobre a verdade total, nos guiaremos pela lógica do infinito, a que mantém presente o todo em cada parte, a lógica impossível de pensar…

O intelecto vai passo a passo, analisando ponto por ponto, do princípio ao fim. É o funcionamento de uma zona muito limitada de nossa mente. Se nos fecharmos nessa zona, construiremos realidades a partir de uma visão limitada, o que tendemos fazer. Não devemos estranhar que rachaduras apareçam e desfaçam nossa construção provisória da verdade, de não encontrar a harmonia que esperávamos. Se estivermos no falso, não será surpreendente que não encontremos a plenitude na vida que desejamos ao evocar o verdadeiro.

A procura da verdade não é algo que se adiciona à vida. É a vida toda e é um caminho contemplativo. Mas como encontrar a verdade? De que instrumentos necessito para conhecê-la? Os instrumentos psicofísicos de que disponho são adequados? Quando observo a objetivação das realidades, o sujeito construindo a realidade, o objeto projetado como real, a relação entre ambos como sendo a mesma coisa, quando descubro esse processo mental, qual será a minha reação? Não há nada a mudar do mundo objetivado na minha consciência, somente o meu olhar. De um olhar adormecido, que se deixa levar pelo pensamento convencional, mudar para um olhar contemplativo, a forma mais intensa de olhar, e a mais viva.

Parece que os esforços do pensamento são poderosos, mas quando refletimos um pouco saberemos que não é assim. A vida nos sacode e todos os cálculos e previsões se dispersam no ar numa rajada de vento. Esquecemos os projetos falidos e começamos outros. Estamos tratando de construir um mundo a partir de pensamentos. E a vida, com a sua resposta sempre pronta, nos devolve à realidade quantas vezes for, colocando-nos diante do espelho das nossas projeções inconscientes. Observe: se uma pessoa está sob efeitos de alguma droga, não nos ocorre que ela tenha de melhorar a sua vida a partir da visão alucinada, só pensamos que volte à normalidade e veja os fatos desse lugar. A contemplação abre a nossa compreensão para um novo caminho, para a nossa realização, para a descoberta da verdade.

Se abrem as portas da nossa mente contemplativa à verdade, também o nosso coração se abre ao sentimento verdadeiro, à plenitude do Ser, ao amor incondicional. Que não nos assuste o ilimitado! Só seremos livres dos conflitos psicológicos que nos limitam quando nos abrirmos ao que não tem limites. Só bebendo a água da fonte profunda do nosso Ser é que podemos saciar a nossa sede de plenitude. Acumulando coisas limitadas, nunca preencheremos o sentimento de vazio do infinito, do eterno.

Quando adentramos no Real, no Ser, a liberdade irrompe inevitavelmente. E então a mente fica clara, transparente para a contemplação. É esse o efeito da Verdade da instantânea totalidade. Produz uma crise que faz regressar as coisas ao seu lugar de origem, a nossa psique. Ao abrir caminho para o novo, a mente começa a tornar-se contemplativa. Há que se desfazer as trincheiras que erguemos para nos defender de batalhas ilusórias. E então os espaços interiores se abrirão, a luz poderá ser vista. A própria luz abrirá o caminho.

A vida contemplativa é em si mesma o caminho luminoso da consciência em direção à Verdade. As distintas atividades da nossa vida são expressões de uma única e mesma coisa, aquilo que somos. Contemplar nos unifica. Contemplamos para unificar tudo em tudo. Contemplamos para que nossa vida se torne consciente, para que toda a energia do viver flua espontaneamente através dos seus canais naturais. Temos de nos tornar um ponto de expansão ao infinito. A contemplação é a ação mais consciente. Não a ação calculada. É a ação mais espontânea e mais livre, porque é a mais iluminada. Não há outra possibilidade de ser livre na ação. Nada nos liberta tanto como a forma direta em descobrir como está funcionando a mente. Podemos fazer mil danças com as energias, mas até descobrirmos como a mente se move no erro, todas essas experiências serão interpretadas a partir da limitação dessa posição errônea.

Enquanto não nos libertarmos dessa fábrica de interpretações, não haverá liberdade. A liberdade que nos abre à verdadeira paz e alegria só virá se nos abrirmos ao Real, ao Ser. É algo simples, mas sutil, como o fio de uma espada. Não basta olhar de qualquer maneira; não pode ser estudado, como se estuda outras coisas. Ao contemplar, eu sou o contemplado, transcendendo o pensamento e a tentativa de tornar-me aquilo que pensei.

Qualquer inteligência pode fazer isso se se abrir à Inteligência total, atemporal? Posso abrir-me a Ela? Posso viver nessa presença da inteligência divina? O que é que se pode fazer? Os exercícios ou as austeridades serão inúteis aqui. A inteligência é só um olhar. O meu olhar é que tem de mudar. Se me distraio em melhorar as coisas, perco o tempo sem me aperceber de que posso simplesmente olhar de um modo distinto.

A partir da visão limitada em que me encontro, do passado que se repete, não posso mudar a psique, não posso tornar a minha vida bela e criativa. A Inteligência atemporal descobre-se na contemplação, e só ela dissolve o passado. Contemplar é viver espontânea e livremente, num instante eterno.

O SENTIDO DA VIDA DESCOBRE-SE NO SILÊNCIO.

Vivamos com confiança e paciência! Sigamos mantendo a mente na contemplação da Verdade, tanto quanto possível. Essa prática tocará a força do chamamento interior. Ouviremos melhor se deixarmos um espaço vazio e silencioso na psiqué. A Verdade se escuta no silêncio. Busquemos, portanto, por mais atitudes silenciosas. Tudo o que seja silenciar pensamentos, mémórias físicas, psiquícas, intelectuais, todo silenciar é bom e é útil. Na ausência do velho e do interpretado, o verdadeiro, o real, o Ser pode brilhar. Se não alcançamos este silêncio, é porque estamos por demais entretidos nas múltiplas criações mentais do pensamento. Não há várias coisas, há apenas uma: a Consciência luminosa. Não há três realidades: Deus, o mundo e eu (as três entidades da metafísica e da religião tradicionais). Há apenas uma: Deus ou a Realidade absoluta. Algo que apareça fora disso, já não é o Real, é um mero pensamento. Só no domínio do pensamento é que existe a divisão. O Real não tem separação. Para obter essa compreensão há que atravessar a mente pensante. Ultrapasse! Esse o único sagrado. Todo o mais só foi denominado sagrado pela distorção dessa vivência de Unidade.

O caminho verdadeiro se descobre no silêncio. Não importa que crenças tenha ou deixe de ter. Não importa se se considera religioso, ateu ou agnóstico. A ideologia pessoal também é irrelevante. As crenças pertencem à zona superficial da mente. Quando se aprofunda em si mesmo, descobre-se a Unidade, não importa o que pense. Perante a luz que se acende na contemplação, todas as ideologias se dissolvem.

O sentido da vida só é encontrado quando os desejos, e com eles as ilusões de pensamento, se desvanecem na luz. Na contemplação do sagrado, no silêncio do pensamento, abre-se um caminho infinito para o eterno. E nunca mais volta-se a levantar questões sobre um sentido temporal da existência.

Contemplar a Verdade é sê-la. Contemplar o Ser é sê-lo. Contemplar o eterno é sê-lo.

 

fonte do texto (tradução livre):

MARTÍN, Consuelo. Contemplar lo eterno: abriendo la mente al infinito. Madri: Gaia ediciones, 2012, p.11-15.

Disponível em <https://www.grupogaia.es/libros/contemplar-lo-eterno/9788484454489/>