Nem por toda a beleza
deixar-me-ei perder,
mas somente por um não sei o quê
que se alcança por acaso.
O sabor de um bem acabado
o máximo que ele possa fazer
é enfastiar o apetite
e estragar o paladar;
assim, nem por toda a doçura
deixar-me-ei perder,
mas somente por um não sei o quê
que se alcança por acaso.
O coração generoso
nunca se preocupa em se conter
onde é possível continuar avançando,
ele se detém no mais difícil;
nada o satisfaz
e sua fé aumenta tanto
que ele saboreia um não sei o quê
que só se alcança por acaso.
Aquele que fica enlanguescido de amor
pelo ser divino atingido,
seu gosto se transforma de tal modo
que os sabores lhe escapam,
como aquele que, tendo febre,
sente aversão pelas iguarias que estão à sua frente
e tem fome de um não sei o quê
que só se alcança por acaso.
Não fiquem encantados
se o gosto permanecer desse modo
porque a causa do mal
é estranha a todo o resto
e, assim, toda a criatura
acaba por sentir-se estranha
e ele saboreia um não sei o quê
que só se alcança por acaso.
Com efeito, quando a vontade
é atingida pelo ser divino
ela não pode manter-se
senão pelo ser divino,
mas sua beleza sendo tal
que não é possível vê-la a não ser pela fé,
ela a saboreia em um não sei o quê
que só se alcança por acaso.
Portanto, se tal é o que vocês amam
digam-me se sofreriam,
uma vez que seu gosto não se encontra
em nenhum ser criado,
mas em algo sem forma corporal
e que não encontra apoio nem pé,
saboreando aí um não sei o quê
que só se alcança por acaso.
Não acreditem que o interior,
que é de preço muito mais elevado,
encontra contentamento e alegria
no que agrada neste mundo,
mas para além de toda beleza
e o que é, foi e será,
ele saboreia aí um não sei o quê
que só se alcança por acaso.
Quem pretende possuir ainda mais,
coloca sua preocupação, sobretudo,
no que resta a ganhar
e não no que já está ganho;
assim, para alcançar algo mais elevado,
sempre hei de tender,
além de toda coisa, para um não sei o quê
que só se alcança por acaso.
Por tudo o que, pelo sentido,
pode neste mundo ser apreendido,
e tudo o que pode ser compreendido,
embora isso seja muito elevado,
nem pela graça e beleza
deixar-me-ei perder,
mas somente por um não sei o quê
que se alcança por acaso.
fonte do texto:
PELLÉ-DOUËL, Yvonne. Saint Jean de la Croix et la nuit mystique. Em: LELOUP, Jean-Yves. Carência e Plenitude: elementos para uma memória essencial. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 197-200fonte da imagem:
JACOBSON, Linda. Therassia Night. 2000. Disponível em <https://www.lindajacobson.net/2000-2010>