O QUE É FEITO DO NOSSO DESEJO?

Há perguntas que estão, desde sempre, à nossa espera. Podemos evitá-las, tentar passar ao largo ou desconversar por longo tempo, mas dentro de nós sabemos que esse esconde-esconde tem um preço. Subtraí-las é subtrairmo-nos e faltar à chamada que a vida nos faz. Uma dessas perguntas prende-se com o desejo e, na forma mais incisiva e pessoal, formula-se assim: “Qual é o meu desejo?”. O meu desejo profundo, aquele que não depende de nenhuma posse ou necessidade, que não se refere a um objeto, mas ao próprio sentido. “Qual é o meu desejo?” O desejo que não coincide com as cotidianas estratégias do consumir, mas sim com o horizonte amplo do consumar, da realização de mim como pessoa única e irrepetível, da assunção do meu rosto, do meu corpo feito de exterioridade e interioridade (e ambas tão vitais), do meu silêncio, da minha linguagem.

A sociedade de consumo, com as suas ficções e vertigens, promete satisfazer tudo e todos, e falaciosamente identifica a felicidade com o estar saciado. Saciados, cheios, preenchidos, domesticados – assim estamos, resolvidas na festa do consumo as nossas necessidades (ou o que pensamos que sejam). A saciedade que se obtém pelo consumo é uma prisão do desejo, reduzido a um impulso de satisfação imediata. O verdadeiro desejo, porém, é estruturalmente assinalado por uma falta, por uma insatisfação que se torna princípio dinâmico e projetivo. O desejo é literalmente insaciável porque aspira àquilo que não se pode possuir: o sentido. Nessa linha, o desejo não se sacia, mas aprofunda-se.

Por tudo isso não encontramos a pergunta “Qual é o meu desejo?” sem consentir nessa viagem, que só começa quando ousamos entrar em nós mesmos. Quando, por força de razões relevantes ou pela ironia do que nos parece apenas poeira displicente de um acaso, nos dispomos finalmente a compreender o que está em nós desde o princípio, mas habitando o outro lado dos nossos espelhos. E, como dizia Françoise Dolto, quando chega essa hora, “quando um qualquer ser humano sente um desejo suficientemente forte para assumir todos os riscos do seu próprio ser, é porque está pronto para honrar a vida de que é portador”.

O que é que acontece, então? Damos por nós interrogando, refletindo, hesitando, elaborando interiormente a nossa experiência, olhando de outra maneira para determinados momentos. Talvez nos sintamos inesperadamente próximos daquilo que Merleau-Ponty deixou escrito: “Solidão e comunicação não devem ser vistos como os dois termos de uma alternativa, mas como duas faces de um único fenômeno”. Talvez arrisquemos pela primeira vez ultrapassar os circuitos rotineiros, a cartografia sonolenta e supostamente confortável onde enclausuramos a vida. Particularmente difícil será manter contato com o sofrimento submerso e abraçar aquela dor que nos custa reconhecer. A não sei que braças de profundidade situa-se uma dor nunca reparada, mas que condiciona toda a superfície. Identificar e cuidar dessa dor é a condição para sermos nós mesmos e podermos entender também a dor que os outros transportam, tocando a nossa e a sua verdade. O momento da aceitação de si, com lacunas e vulnerabilidade, é uma etapa crítica, dilacerante até, mas abre-nos à transformação e fecundidade possíveis, abre-nos à enunciação do desejo. E, não o esqueçamos, quantas vezes a vulnerabilidade acolhida se torna a janela por onde entra a inesperada transparência da graça.

Cada pessoa é um Homo desiderans [Ser Humano que deseja]. Mas com frequência temos de nos perguntar sobre o que é feito do nosso desejo.

fonte do texto:
MENDONÇA, José Tolentino. A mística do instante: o tempo e a promessa. São Paulo: Paulinas. 2016. p. 76-78