A SENHA DA VIDA

Até agora viveram sobre esta terra 106 bilhões de seres humanos. Nunca dois seres humanos foram totalmente iguais. Cada um e cada uma existem uma única vez. Com outras palavras: nunca antes eu existi e nunca mais existirei. Somente eu me tornei eu, somente eu posso ser eu.

O filósofo da religião Romano Guardini diz: “Eu fui dado a mim”. Isto significa: No início de minha vida não está um acaso e nenhuma decisão própria e nenhum esforço próprio, mas um presente. Eu fui dado de presente a mim. Eu me recebi. A isto estão associadas uma tarefa e uma responsabilidade: tornar-me quem sou.

Na realidade acontece também frequentemente algo diferente: eu tento tornar-me quem eu não sou ao curvar-me perante ideais e expectativas alheios. Eu desempenho papéis que são dados previamente, penso e me movo dentro de modelos fixos e me oriento por uma série infinitamente longa de convenções. Isto parece ser um caminho seguro por ter sido trilhado, recomendado ou prescrito por outros. Mas, com certeza, ele não conduz a mim.

Eu fui dado a mim mesmo, diz Guardini.

Entretanto, isto nem sempre me alegra. Às vezes sofro com minhas imperfeições e deficiências. Então eu gostaria de ser um outro. Neste ponto inicia-se, segundo Guardini, uma forma especialmente exigente de ascese: “Eu tenho de renunciar ao desejo de ser diferente do que sou; um outro em relação ao que sou”. Ou, formulando positivamente: “Eu devo estar disposto a ser o que sou. Disposto a ter qualidades que tenho. Disposto a estar dentro dos limites que me são postos”.

Esses limites tornam-se sempre mais claros ao longo dos anos: Eu não sou tudo, não posso tudo e não tenho tudo. Muitas coisas dão certo apenas pela metade; outras, não. A própria biografia apresenta algumas deficiências. E no final eu me deparo com o limite absoluto de todas as minhas possibilidades: a finitude.

Quando já idoso, Romano Guardini teve um sonho estranho. Ele ouviu uma voz que lhe dizia que a todo ser humano é dada uma palavra para levar consigo pelo caminho. Essa palavra seria como uma senha que abre portas para tudo o que acontece no decorrer da vida. Seria tarefa e responsabilidade, força e fraqueza, proteção e perigo. E a tarefa do ser humano seria fazer as pazes com essa palavra.

Chegado ao final do seu caminho, Guardini encontrou a certeza de sua vida, assim como a vida de qualquer outro ser humano, está sob um desígnio. Escapa ao arbítrio do acaso. Tem um sentido.

Guardini anotou essa descoberta em um papel que foi encontrado em seu espólio. Ele não diz nada mais a respeito dessa palavra que brilha como uma estrela sobre cada vida, e é diferente para cada ser humano.

Seria belo conhecer essa palavra. Mas, isto acontece raramente. No mais das vezes ela permanece obscura e quase não pode ser decifrada. Temos de nos contentar com um leve pressentimento. Presumivelmente é uma palavra sem palavras, mais próxima do silêncio do que da linguagem.

Entretanto, já a pressuposição de que pudesse existir tal palavra nos faz confiantes.

fonte do texto:
MARTI, Lorenz. Quem te mostrou o caminho? Um cachorro!: a mística descoberta no cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2009. p.201-202.

fonte das imagens:
LA SILLA Observatory; FITZSMMONS, Alan. Admiring the galaxy. 20 maio 2013. Disponível em <http://www.eso.org/public/images/potw1320a/>