Existem todos os tipos de peregrinos; entre os animais, o falcão peregrino, literalmente imantado pela presa a ser atingida; o tubarão peregrino que migra regularmente no Atlântico Norte; os grilos peregrinos que, através de longas procissões aéreas, vão em direção às plantações alimentícias. Falcão, tubarão e grilo foram, sem dúvida, chamados de “peregrinos” porque, devido a um instinto certeiro, eles sabem para onde devem ir; o apetite é um grande guia, o animal peregrino está inteiramente orientado para aquilo que pode saciá-lo, o objeto do seu desejo é seu objetivo e seu todo. A intensidade e a velocidade da sua “caminhada” é proporcional ao espaço da sua falta… O mesmo acontece com o ser-humano peregrino?
Ele também é um animal e não consegue evitar procurar o que pode preenchê-lo e alimentá-lo, e não apenas no nível material (ele não passaria, então, de um caçador, mas ainda não seria um peregrino). Existem nele fomes afetivas e espirituais, o ser humano não vive apenas de pão, mas também da amizade, de relações, de beleza, de poesia…
Não existe nele um desejo pela verdade, pela harmonia? E, além daquilo que as paisagens podem mostrar, um desejo pelo puro espaço? Além daquilo que as palavras podem dizer, um desejo de silêncio? Além daquilo que a consciência pode compreender e apreender, um desejo de pura consciência? Algo que esteja além de toda compreensão, de todo objeto a ser capturado ou compreendido?
Qual desejo faz do humano que caminha sobre a terra uma coisa diferente de um falcão, um tubarão ou um grilo? Algo diferente de um caçador, um turista ou um andarilho?
O caçador está à espreita de uma presa, de um objeto a ser agarrado e capturado, alguma coisa que possa alimentá-lo, a ele e àqueles que o acompanham; ele não suportaria voltar da sua viagem tendo as mãos vazias, as malas devem estar cheias de lembranças e, se ele for um caçador de imagens, suas próteses – fotos e vídeos – devem transbordar de impressões sonoras e coloridas. Se nada trouxermos, de que serviu a viagem? Os conhecimentos que assim pudemos acumular permanecem, entretanto, no exterior; lembranças que não mudaram nem o corpo nem a alma…
O turista poderia ser considerado um caçador se ele estivesse em busca apenas do necessário e do “nutritivo”, mas o que mais o inquieta e excita, se não for obrigatoriamente o superficial, é a novidade: novas terras, novos semblantes, novos gadgets, novas engenhocas, novas impressões, novas sensações… Não é esta uma maneira inteligente de enriquecer sua sensibilidade, sua vida emocional e afetiva?
Somos sempre, mais ou menos, como tubarões, falcões ou grilos, consumidores mais ou menos vorazes de tudo aquilo que nos é oferecido nos mercados… Passamos assim de um objeto a outro e o desejo ali repousa um instante, desfrutando aquilo que lhe é proposto, mas uma vez “digerido” este novo objeto, a fome se intensifica, ela fica ainda mais viva, o passo acelera e, caso tivéssemos os meios financeiros, isto não teria fim.
O turista não caminha sobre a terra, ele corre sobre ela, ele a pisoteia, ele não tem tempo para contemplá-la, ele tem tempo apenas para buscar um outro objeto para o seu desejo, mal tendo chegado, ele pergunta: “Onde estaremos amanhã?” Nenhuma voz, nenhum guia para lhe colocar a questão: “Para onde você corre desta maneira? O que está buscando?”, tão forte é a evidência, a evidência do seu instinto: ele busca um prazer, em seguida outro prazer… Ele não pagou o preço para isto?
O andarilho é, sem dúvida, mais “avançado” do que o turista. Ele não busca mais um prazer, uma coisa, um objeto a tomar e a consumir (monumento, paisagem, corpo tropical ou cozinha estrangeira), ele busca o prazer, e seu prazer é caminhar e respirar, é estar em um lugar novo que ele descobre, sobre uma terra que ele percorre a passos largos e na qual ele encontra os habitantes… Sem pensar primeiro em levar alguma coisa, ele caminha pelo prazer de caminhar, ele vê pelo prazer de ver, ele encontra o outro pelo prazer do encontro; o objeto não é mais o seu objetivo, mas seu lugar de passagem, ali ele se encontra mais alimentado do que se ele tivesse buscado possuí-lo…
O objetivo do andarilho ou do viajante esclarecido não é mais este ou aquele lugar sagrado, exótico ou extraordinário, apesar desses lugares existirem e estimularem a sua caminhada, é o próprio caminhar; ele não permanece na superfície dos mundos que ele atravessa, ele escuta a sua seiva.
O peregrino é, sem sombra de dúvida, pelo menos na partida, um caçador, um turista, um andarilho ou um viajante esclarecido, mas não são todas essas coisas que fazem dele um peregrino. Seria, então, o fato de caminhar rumo a um lugar santo ou sagrado?
Podemos estar em busca de lugares santos e sagrados à maneira dos caçadores; entre algumas pessoas, o apetite espiritual é particularmente desenvolvido. Procuramos, então, objetos de êxtase, ou seja, de gozo… e, de emoções em emoções, de experiências fortes e numinosas em experiências fortes e numinosas, pensamos nos aproximar do céu ou da cobiçada salvação. Podemos ser consumistas com as coisas do espírito, assim como o somos com os bens da terra.
O andarilho espiritual ou o viajante esclarecido sabem que não existe lugar santo ou sagrado; é a nossa maneira de caminhar sobre a terra que faz dela uma terra sagrada ou uma terra profana e, se eles amam os lugares santos e sagrados conhecidos e reputados como lugares elevados e destinos de peregrinação, é para colocar seus passos nos passos daqueles que os precederam e que, graças à sua maneira atenta, respeitosa e celebrante dali caminhar, puderam ali reconhecer “a Presença”.
O objetivo da peregrinação é, a cada passo do caminho, a Presença que nos dá a força de caminhar, é o Sopro que em certos momentos inspira e torna leve nosso caminhar. O objeto do nosso desejo está, sem dúvida, no término da viagem, mas quem nos acompanha já está lá; não se trata mais de um objeto externo, é a força viva que nos mantém de pé e faz bater nosso coração, não é mais um objeto que nos falta, é o próprio movimento da Vida que se dá.
O peregrino não se desloca de objeto de desejo em objeto de desejo (sagrado ou não), de lugar em lugar (santo ou não), ele caminha incessantemente rumo a si mesmo… rumo a “mais eu do que eu mesmo e completamente outro do que eu mesmo”.
O turista caminha rumo a alguma coisa que completa o seu caminhar.
O andarilho caminha rumo ao “caminhar” e ao prazer que isso lhe proporciona.
O peregrino caminha rumo ao caminhante.
Cada passo do peregrino o aproxima de si mesmo, desobstruído de todas as falsas identidades e de todas as malas que o tornam pesado. Seu objetivo não é um objeto de desejo, é o Sujeito que o deseja, é o conhecimento daquilo que o faz caminhar, o próprio princípio da sua vida.
O objetivo é de provar-se como alguém que deseja, como alguém que vive no caminhar. Entramos, então, em um peregrinatio perennis, que não é a corrida cansativa e sem fim que nos conduz de um objeto de desejo, mas a caminhada consciente de um desejo sem objeto, que deixa ser aquilo que é…
Neste deixar ser podemos descobrir “Eu Sou”, Aquele que nós buscamos e que nós já somos. “Aquele que é”, “aquele que caminha”, o alfa e o ômega… Aquele que estava no início da nossa peregrinação sobre a terra. Aquele que estará no final da nossa peregrinação no tempo. Sua Presença é mais do que um gozo e é diferente de uma falta, ela ao mesmo tempo nos preenche e nos deixa um buraco: “é um movimento e é um repouso“, diz o Evangelho de Tomé.
O peregrino solitário, a peregrina solitária, caminha por ele mesmo, por ela mesma, rumo a si mesmo, rumo a si mesma, para, sem dúvida, ali descobrir aquilo que é maior do que ele mesmo, maior do que ela mesma…
O “peregrino pela paz” caminha com os outros, para os outros, rumo à paz de todos os povos por onde passa seu caminho; mas sua mensagem de paz será apenas um discurso se, ao longo do seu caminho, ele não fizer a paz consigo mesmo e com todos aqueles que ele carrega em sua memória; multidão imensa da nossa história pessoal habitada pela nossa história familiar, transgeracional, coletiva, cósmica…
O objetivo do caminho é estar em paz consigo mesmo para estar em paz com os outros. É por esta razão que os primeiros passos do caminho levam a si mesmo.
Siegfried foi para mim o “peregrino escandinavo”. Uma noite seu Deus lhe falou da seguinte maneira: “Siegfried, coração valente, levanta-te! Cavaleiro-peregrino, salva o mundo! Traz-lhe a paz!…”
Siegfried se levantou e, como peregrino-cavaleiro sempre pronto, disse-lhe: “Eis-me aqui, seja o mestre da minha cabeça, do meu coração, do meu ventre e dos meus pés, conduz-me onde quiseres, eu salvarei o mundo, eu defenderei seus tesouros, eu lhes trarei a paz…” Em seguida, após ter refletido alguns instantes, ele se perguntou:
“Mas o mundo é grande, por onde devo começar?
Pelo meu próprio país, é claro, mas meu país é grande, por onde devo começar?
Pela minha própria cidade, é claro, mas a cidade onde moro é grande, por onde devo começar?
Pelo prédio onde moro, é claro, mas o prédio é grande, ali moram várias famílias, por onde devo começar?
Pela minha própria família, é claro, mas com quem na minha própria família devo começar?…”
Foi desta maneira que Siegfried, o cavaleiro-peregrino para a paz, chegou a si mesmo, mas ali também ele se colocou a questão: “Por onde devo começar? Pelo corpo, estar em paz com minhas pulsões? Pelo coração, estar em paz com minhas emoções, meus medos, minhas expectativas, meus sentimentos? Pela cabeça, estar em paz com meus pensamentos? O caminho é longo, mas é, sem dúvida, por ali que devo começar…”
“Salva o mundo”, isso quer dizer “levanta-te, vai rumo a ti mesmo, busca e encontra a paz em ti, uma multidão será salvada junto a ti…” Assim como não podemos amar os outros se não nos amarmos, não podemos levar a paz ao mundo se não estivermos em paz conosco.
Isso é algo tão óbvio que, junto com Siegfried, os peregrinos pela paz sonham com isso dia e noite; caminhar juntos faz com que eles estejam incessantemente “com os pés no chão”: eles falam de paz, eles não estão em paz. Isso impede que eles julguem as nações por onde eles passam.
O peregrino não é perfeito, ele é perfectível.
É por esta razão que ele caminha.
É preciso todo esse caos para fazer uma estrela…
fonte do texto:
LELOUP, Jean-Yves. O sentar e o caminhar. Petrópolis: Vozes, 2013. p.173-179.fonte da imagem:
ROERICH, Nicholas. Peregrino na cidade radiante. 1933. Disponível em <https://aria-art.ru/0/S/Stranniki/12.jpg>